Gramática é um assunto de que gosto bastante e, no entanto, passei muitos anos sem estudar. Somente nos últimos meses retomei esse tema, levando um susto atrás do outro por conta de algumas coisas que descobri ou relembrei a seu respeito. Um desses sustos aconteceu quando desfiz uma ilusão que devo ter criado para memorizar regras com facilidade: a ideia de que as categorias gramaticais (substantivos, verbos, pronomes, etc.) se restringem a palavras específicas, isto é, a ideia de que as categorias gramaticais são como caixas nas quais residem palavras que sempre terão a mesma função em qualquer frase.
Pensando dessa forma, decorei o conteúdo dessas caixas ainda na infância: os pronomes seriam o “eu”, o “tu” e assim por diante, ao passo que o os artigos seriam o “a”, “as”, “uns”, etc. Ao memorizar essas listas, eu acreditava que conseguiria identificar a que categoria pertenceria cada palavra de uma frase. Obviamente, eu estava enganado e até percebi rapidamente esse engano, mas demorei um tempo para consertar meu modo de raciocinar.
Diferentemente do que eu pensava, as categorias gramaticais não designam palavras, não podendo ser comparadas a caixas que guardam instrumentos os quais serão usados sempre do mesmo modo. Cada categoria gramatical designa uma função e essa função pode se aplicar a diferentes palavras, em diferentes contextos. Dizendo de outro modo, uma categoria gramatical é uma espécie de descrição ou definição: aquilo que agir assim ou assado dentro da frase será um verbo, aquilo que se comportar desse ou daquele modo será um pronome, e assim por diante.
Ora, mas então por qual motivo nós atrelamos — com tanta naturalidade — certas palavras a certas categorias?
Da minha perspectiva, trata-se de uma questão sociocultural: nosso contexto sociocultural reforça certos usos das palavras e, por conta do hábito que adquirimos de usá-las assim, passamos a alocá-las “dentro de” certas categorias. Ou seja, ao usarmos recorrentemente as palavras de um jeito, pensamos que esse é o jeito normal e exclusivo de utilizá-las, naturalizando nossos hábitos como categorias gramaticais.
Dou um exemplo. A palavra “Ser” é comumente utilizada como verbo, todavia, quando escrevemos algo como “O Ser”, estamos a utilizando como um substantivo. Devemos interpretar então que a palavra ganhou — circunstancialmente — a função de substantivo? Quer dizer, tal palavra era — em sua essência — um verbo e foi transformada em substantivo? Creio que não. As palavras só ganham funções no momento em que as utilizamos, consequentemente, só interpretarmos “Ser” com mais frequência como verbo porque a utilizamos mais comumente assim. Nosso hábito de usar as palavras da mesma forma contribui para a ilusão de que elas exerçam sempre a mesma função.
Em sua gramática, Bechara usa um exemplo que tomo emprestado: “Eu o disse ontem, que sairia com eles”. A princípio, eu tenderia a alocar a palavra “o” na categoria dos artigos, entretanto, ela aparece nesse exemplo como um sinônimo de “isso” e exerce a função de pronome. Então, “o” é artigo ou pronome? A resposta dependerá da função que essa palavra exercer quando ela for utilizada. Nesse caso, é pronome, porém se dissermos: “O “o” é usado para designar palavras masculinas”, por exemplo, então “o” não será nem um artigo, nem um pronome, mas um substantivo.
Qual o limite disso? Quantas e quais funções cada palavra pode exercer? Confesso que ainda não sei. Talvez o contexto histórico tenda a circunscrever quais as funções exercidas por uma palavra, mas isso é somente um palpite.
Por sinal, os gramáticos tem um modo curioso de lidar com essas múltiplas possibilidades, ele consiste em citar e autores clássicos que fizeram um uso do idioma diferente daquele com que estamos acostumados. Lembro que foi assim que aprendi que Machado costuma usar o verbo “aposentar” com o significado de “ficar dentro dum aposento”. Por isso, quando ele escreve algo como: “João ficou aposentado ali”, por exemplo, está querendo dizer que João ficou dentro daquele aposento e não que João parou de trabalhar para ficar ali.
Em suma, desfazer minha ilusão gramatical tem aumentado meu interesse pelo universo das palavras e aprofundado minha percepção de que, mesmo dentro daquilo que conhecemos melhor, existem numerosos consensos e hábitos que podem ser desfeitos para dar lugar a um uso mais consciente e diversificado da linguagem. Particularmente, acho isso fascinante.